A noite ca�a sobre o Rio de Janeiro como um v�u de veludo, tingindo o c�u de tons de laranja e roxo enquanto os arranha-c�us de vidro refletiam os �ltimos raios de sol. No terra�o do luxuoso Hotel Fasano, Elisa Monteiro ergueu a ta�a de champanhe, os dedos tremendo quase imperceptivelmente. Diante dela, um mar de ternos e vestidos de grife murmurava elogios for�ados. *"A nova cara da Monteiro Cosm�ticos"*, diziam, mas os sorrisos eram finos, carregados de ceticismo. Afinal, ela era apenas a *"menina mimada"* que herdara o imp�rio ap�s a morte do pai. Ningu�m acreditava que ela pudesse limpar a lama do passado.
- ... e � por isso que nosso projeto social na favela da Rocinha ser� revolucion�rio - concluiu Elisa, a voz firme apesar do n� no est�mago. O sil�ncio pairou por um segundo, at� que uma risada seca cortou o ar.
- Revolucion�rio? - rebateu o diretor financeiro, Cl�udio, erguendo uma sobrancelha. - Voc� quer transformar uma f�brica em um centro cultural? Isso � ing�nuo, Elisa.
Ela conteve o impulso de revirar os olhos. Cl�udio era um dos que ainda a viam como uma crian�a brincando de empres�ria. Mas ela n�o desistiria. A f�brica na Rocinha, abandonada desde que o av� a constru�ra d�cadas atr�s, era a chave para provar que a Monteiro Cosm�ticos poderia ser mais do que um nome manchado por corrup��o.
Enquanto os convidados se dispersavam, Elisa deixou o sal�o e seguiu para o estacionamento, onde seu motorista a aguardava. O carro deslizou pela Lagoa Rodrigo de Freitas, mas, ao inv�s de seguir para o apartamento da fam�lia em Ipanema, ela pediu para ser levada � Rocinha. Precisava ver a f�brica.
- Senhorita, � perigoso - alertou o motorista, olhando pelo retrovisor.
- Eu sei.
A verdade era que a f�brica agora estava sob o controle de Viviane Correa, cujo tr�fico dominava o morro. Mesmo assim, Elisa insistira em negociar o uso do espa�o. *"� meu direito"*, repetia, ignorando os avisos.
***
Naquele mesmo instante, no alto do morro, Daniel Correa encarava a tela do laptop, os dedos pairando sobre o teclado. A luz azulada iluminava seu rosto cansado, destacando a cicatriz que cortava sua sobrancelha esquerda - lembran�a de um erro do passado.
- Voc� tem certeza? - perguntou pela d�cima vez, a voz rouca.
Viviane, sua irm� mais velha, cruzou os bra�os, os olhos frios como os de uma serpente.
- � simples, Daniel: ou voc� desativa os sistemas de seguran�a daquela f�brica hoje, ou eu mando os meninos cobrarem suas d�vidas.
Ele cerrou os punhos. Odiava voltar ao mundo digital, o mesmo que o fizera perder tudo anos atr�s. Mas Viviane o segurava pelo pesco�o: as d�vidas de jogo, a promessa de prote��o... N�o havia sa�da.
- Fa�o isso uma vez. S� uma - rosnou, digitando o c�digo que invadia a rede da Monteiro.
***
A f�brica surgia � frente, uma estrutura de concreto desgastado cercada por muros altos. Elisa desceu do carro, o vento agitando seu cabelo escuro. Dois homens de Viviane a escoltaram at� o port�o, seus olhares desconfiados.
- A senhora n�o devia estar aqui - resmungou um deles, abrindo o cadeado.
- � minha propriedade - ela retrucou, adentrando o p�tio.
O ar estava carregado de umidade e o cheiro de terra molhada. Elisa caminhou at� o pr�dio principal, imaginando o espa�o transformado em oficinas de arte, creches... De repente, um clar�o azul piscou no canto de sua vis�o. Ela se virou, alcan�ando uma porta entreaberta.
- Quem est� a�? - perguntou, o cora��o acelerado.
A resposta veio na forma de uma figura alta emergindo das sombras. O homem usava uma jaqueta preta desgastada, os olhos escondidos sob a aba de um bon�.
- Voc� n�o deveria estar aqui - ele disse, a voz grave e cautelosa.
- E voc�, quem �? - Elisa avan�ou, notando o laptop aberto sobre uma mesa pr�xima. - O que est� fazendo?
Daniel praguejou mentalmente. N�o esperava que a *herdeirazinha* aparecesse justo quando ele estava no meio do hack.
- Isso n�o � da sua conta - retrucou, bloqueando a vis�o do computador.
Elisa estreitou os olhos, a intui��o disparando alarmes. Havia algo familiar naquele homem, algo que n�o conseguia nomear.
- Se voc� trabalha para Viviane, saiba que esta f�brica voltar� a ser �til. N�o vou deixar que a destrua.
- �til? - ele deu uma risada amarga. - Voc� n�o faz ideia do que est� falando.
Antes que ela pudesse responder, um barulho de tiros ecoou ao longe. Daniel agarrou seu bra�o, puxando-a para tr�s de uma coluna.
- Fique abaixada - ordenou, o corpo tenso.
Elisa sentiu o calor de sua m�o atrav�s do tecido fino do vestido. Por um segundo, seus olhares se encontraram, e algo perigoso passou entre eles - curiosidade, desafio, uma atra��o que nenhum dos dois estava preparado para admitir.
Quando os tiros cessaram, Daniel j� havia desaparecido, deixando apenas o laptop abandonado e uma sensa��o de que nada voltaria a ser como antes.
Elisa saiu da f�brica com mais perguntas do que respostas. No carro, olhou para o horizonte, onde as luzes da cidade cintilavam como estrelas ca�das. Algo lhe dizia que aquele homem misterioso era apenas o primeiro de muitos segredos que a esperavam nas sombras.
E, enquanto o motorista a levava para casa, ela n�o percebeu o envelope pardo que escorregara de sua bolsa durante a confus�o - um documento antigo, com o carimbo *"Projeto F�nix"* e o nome de seu pai.
A verdade estava mais pr�xima do que imaginava.